14 de fev. de 2011

Honorários advocatícios na Justiça do Trabalho: nova análise após a Emenda Constitucional nº 45/2004

Fonte: http://jus.uol.com.br/revista/texto/7000/honorarios-advocaticios-na-justica-do-trabalho
Publicado em 07/2005


             Entendo que o panorama foi modificado, passando a ser plenamente cabível a condenação em verba honorária na seara laboral, tanto os honorários contratuais, quanto os sucumbenciais, mesmo nas lides envolvendo relação de emprego.
            Com a edição da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, intitulada de Reforma do Poder Judiciário, inúmeras e incontáveis alterações estão sendo sentidas na esfera da Justiça do Trabalho, esta composta de juizes pródigos na aceitação das mudanças legislativas que buscam trazer maior modernização à atuação jurisdicional, notadamente participando ao jurisdicionado crescente acesso ao aparato estatal de resolução dos conflitos, com celeridade, efetividade e, sobretudo, justiça.
            E é dentro deste espectro multifário de abrangência das mudanças trazidas pelo constituinte derivado reformador que se encontra o objeto deste estudo, mais especificamente quanto a uma nova visão do cabimento dos honorários advocatícios na âmbito do processo do trabalho, pois, penso, que após a publicação da emenda, o status quo ante foi incisivamente modificado.
            Antes de entrar no tema específico quanto ao cabimento da condenação na verba honorária, mister se faz esquadrinhar algumas linhas para diferenciação das duas hipóteses de condenação em honorários advocatícios previstos em lei. Existem os honorários advocatícios contratuais, vincados em norma de direito material, fruto da alteração nascida com o novel Código Civil de 2002 e os honorários advocatícios sucumbenciais, estribados na norma do Código de Processo Civil.
            Tem-se, ab initio, que os honorários advocatícios provenientes da sucumbência não se confundem com os honorários contratuais. Estes são uma das modalidades do ressarcimento por perdas e danos decorrentes do inadimplemento das obrigações, vale dizer, os honorários contratuais visam recompor os prejuízos experimentados pelo lesado em razão da contratação de advogado para patrocinar a sua demanda em busca do cumprimento forçado da obrigação.
            Não é razoável que a pessoa que teve parte de seu patrimônio vergastado venha socorrer-se do Poder Judiciário e, caso demonstrado seu direito, apenas seja restituído com parte dele, pois do montante total que obteve, tem que destacar parte para pagar os honorários contratuais de seu advogado. De igual forma, deverá ser ressarcido o demandado que injustificadamente teve que contratar causídico para vir à juízo contrapor pedidos que não se fizeram devidos.
            Aquele que injustificadamente move a máquina judiciária e não obtém êxito em seu desiderato, deve arcar com todas as despesas que deu causa.
            Veja-se as disposição legais do novo Código Civil:

            "Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
            Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais, regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
            Art. 404. As perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, serão pagas com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional."

            De forma exaustiva e literal, o legislador ordinário colocou em três diversos dispositivos que os honorários de advogado estão incluídos entre as despesas que o devedor deve pagar ao credor, em face do descumprimento da obrigação. Uma leitura despretensiosa dos artigos transcritos poderia levar o intérprete à inferir que nada mudou em nosso ordenamento, pois os honorários advocatícios sempre fizeram parte das condenações judiciais, com espeque na norma processual civil.
            No entanto, essa interpretação além de ser equivocada, data venia, afronta o gênio do legislador ordinário que trouxe a inovação em comento. A se pensar que nada mudou, estar-se-ia fazendo letra morta a inclusão literal dos honorários advocatícios nos artigos 389, 395 e 404 do novel Código Civil. E o que é mais grave, estar-se-ia, também, desprezando o princípio basilar de qualquer restituição por inadimplemento da obrigação: o princípio da restitutio in integrum, que o mesmo codex fez questão de ressaltar nos artigos 402 e 403, verbis:
            "Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidos ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.
            Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual." (grifei).

            A ressalva alhures sublinhada coloca pá de cal sobre a controvérsia, uma vez que o legislador é claro em dizer que a indenização por perdas e danos, incluídos os honorários contratuais (danos emergentes), não impede a condenação em outras verbas dispostas na lei processual, como é o caso dos honorários sucumbenciais previstos no artigo 20 do Caderno Processual Comum.
            A Lei nº 8.906/94 (Estatuto da OAB) há muito tempo já faz a distinção entre as diversas espécies de honorários advocatícios nascidos de qualquer condenação judicial, diferenciando de forma peremptória os honorários convencionados (contratuais) dos sucumbenciais. Veja-se o que diz o seu artigo 22: "A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência.".
            Em alento à diferenciação que fiz linhas acima, colho dos lúcidos comentários aos dispositivos legais feito pelo jurista MÁRIO LUIZ DELGADO RÉGIS:

            "Os honorários referidos neste artigo não são os honorários sucumbenciais, já contemplados pela legislação processual. Trata-se de honorários extrajudiciais, a serem incluídos na conta sempre que o credor houver contratado advogado para fazer valer seu direito." (Novo Código Civil Comentado, Coordenador Ricardo Fiuza, 2ª edição, Saraiva, 2004, pág. 349).

            Esta é a interpretação sistemática que se extrai dos artigos citados do Código Civil de 2002, visando prestigiar o princípio da restituição integral. Repiso que os honorários contratuais visam recompor as perdas e danos causados ao lesado, de forma que a sua integralidade é destinada ao detentor do direito material (parte litigante) e não ao advogado, como sói acontecer com os honorários sucumbenciais (artigo 23 da Lei nº 8.906/94).
            É requisito indispensável de qualquer indenização por danos materiais a demonstração da extensão do prejuízo, materializada, na hipótese, pela apresentação do contrato particular de honorários advocatícios firmado entre cliente e advogado, visando recompor ao titular do direito material a integralidade daquilo que pagou ao seu causídico. Acrescento que o magistrado não está obrigado a condenar o vencido no adimplemento dos honorários contratuais quando estes estiverem fixados em patamar superior aos limites impostos pela Ordem dos Advogados do Brasil, que na Justiça do Trabalho recomenda que o percentual do causídico seja fixado entre 20 e 30% do êxito obtido. Nada impede, antes tudo recomenda, que o juiz rejeite o pedido nestas hipóteses e oficie à Ordem dos Advogados do Brasil para dar-lhe conhecimento da falta cometida pelo profissional.
            O ilustre magistrado LUIZ EDUARDO GUNTHER é o principal defensor do cabimento dos honorários advocatícios, contratuais e sucumbenciais, na Justiça do Trabalho. A título exemplificativo trago decisão de sua relatoria, verbis:
            "VÍNCULO DE EMPREGO DECLARADO EM JUÍZO – CABIMENTO DA MULTA DO ART. 477-CLT – "A controvérsia em torno do liame empregatício não afasta o direito do obreiro à multa prevista no artigo 477, parágrafo 8º, da CLT em valor equivalente ao salário, ausente qualquer restrição à penalidade atrelada ao reconhecimento judicial do vínculo de emprego. Aplicável, ainda, o art. 389 do novo código civil: " não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado", assegurando, da forma mais ampla possível, a reparação." (TRT 9ª R. – Proc. 13322-2001-015-09-00-8 – (27793-2003) – Rel. Juiz Luiz Eduardo Gunther – DJPR 05.12.2003).

            Paralelamente, são admitidos, de forma cumulativa, a condenação em honorários advocatícios sucumbenciais, estes já sedimentados em todas as esferas do Poder Judiciário, os quais encontram residência legal no artigo 20 do Digesto Processual Comum, que assim vaticina:

            "A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios. Essa verba honorária será devida, também, nos casos em que o advogado funcionar em causa própria.
            § 1º. O juiz, ao decidir qualquer incidente ou recurso, condenará nas despesas o vencido.
            § 2º. As despesas abrangem não só as custas dos atos do processo, como também a indenização de viagem, diária de testemunhas e remuneração do assistente técnico.
            § 3º. Os honorários serão fixados entre o mínimo de 10% (dez por cento) e o máximo de 20% (vinte por cento) sobre o valor da condenação, atendidos:
            a) o grau de zelo do profissional;
            b) o lugar de prestação do serviço;
            c) a natureza e importância da causa, o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço.
            § 4º. Nas causas de pequeno valor, nas de valor inestimável, naquelas em que não houver condenação ou for vencida a Fazenda Pública, e nas execuções embargadas ou não, os honorários serão fixados consoante apreciação eqüitativa do juiz, atendidas as normas das alíneas "a", "b" e "c" do parágrafo anterior.
            § 5º. Nas ações de indenização por ato ilícito contra pessoa, o valor da condenação será a soma das prestações vencidas com o capital necessário a produzir a renda correspondente às prestações vincendas (artigo 602), podendo estas ser pagas, também mensalmente, na forma do § 2º do referido artigo 602, inclusive em consignação na folha de pagamento do devedor.".

            Para elucidação dos parâmetros de fixação da verba honorária, colho do escólio nascido da pena genial do Desembargador e Professor Doutor da Universidade de São Paulo, JOSÉ ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE, ipsis litteris:

            "Interpretação literal e isolada do positivo leva à conclusão equivocada de que as despesas e os honorários estão sempre relacionados à sucumbência. Essa regra, todavia, é mera aplicação do princípio da causalidade, segundo o qual responde por tais verbas aquele que indevidamente deu causa ao processo.
            Na grande maioria dos casos, existe relação direta entre esse ônus e a sucumbência. Quem normalmente torna necessário o processo é o vencido, seja ele autor ou réu. Caso a tutela jurisdicional seja concedida a quem formulou o pedido, significa que o réu resistiu indevidamente à atuação espontânea da regra de direito material. Improcedente a demanda ou extinto o processo sem julgamento de mérito, pode-se afirmar, em princípio, que o autor movimentou injustificadamente a máquina judiciária." (Código de Processo Civil Interpretado, Coordenador Antonio Carlos Marcato, Atlas, 2004, pág. 103).

            O artigo 21 do Código de Processo Civil dita regra quanto aos critérios para fixação e distribuição dos honorários advocatícios. Veja-se o que diz o citado dispositivo:

            "Se cada litigante for em parte vencedor e vencido, serão recíproca e proporcionalmente distribuídos e compensados entre eles os honorários e as despesas.
            Parágrafo único. Se um litigante decair de parte mínima do pedido, o outro responderá, por inteiro, pelas despesas e honorários.".

            De notória aplicabilidade no processo comum, o regramento citado, com mais razão deverá ser invocado nas lides trabalhistas. Se no processo civil, onde grande parte dos processos contém um único ou poucos pedidos, a norma é constantemente utilizada, com mais razão deverá ser no processo trabalhista, uma vez que, na esmagadora maioria dos casos, os processos na Justiça do Trabalho contém muitos pedidos, os quais, em vários casos, são acolhidos em parte, significando dizer que tanto o autor quanto o réu serão reciprocamente sucumbentes, cada qual em parte da demanda na qual sagrou-se perdedor.
            Nestas hipóteses, deverá o juiz fixar os honorários advocatícios de forma proporcional, repartindo-os de forma igualitária ao êxito individual na demanda, proporcional ao ônus da sucumbência. Por exemplo, se o autor fez 10 pedidos e teve acolhidos 6, significa dizer que saiu vencido em 40%, ao mesmo passo que o demandado perdeu 60% do montante em discussão. Com esses parâmetros objetivos, deverão ser fixados os honorários.
            Interessante pontuar que a norma legal também prevê a possibilidade de compensação dos honorários proporcionalmente fixados à cada parte, isto é, no exemplo citado no parágrafo supra, a verba honorária será fixada em favor do autor, considerando o percentual de acolhimento dos pedidos de 20%, obtido pela diferença dos 60% de êxito com os 40% de ônus. Ideal que o magistrado fixe o valor em quantidade monetária, para facilitar a liquidação da decisão e atualização do débito.
            O parágrafo único, também, é de larga aplicabilidade no processo do trabalho, vez que em grande parte dos casos um dos litigantes fica vencido em parte mínima da demanda, de forma que deverá o sucumbente na maior parte, ser condenado na integralidade da verba honorária à parte vencedora.
            Penso que, valendo-se da norma ora estudada e das disposições do artigo 368 do Código Civil inerente à compensação, poder-se-á ser invocada por analogia a possibilidade de compensação quanto aos honorários contratuais, nas hipóteses de acolhimento parcial dos pedidos.
            Fixada esta primeira premissa quanto ao cabimento em qualquer condenação judicial da indenização por perdas e danos quanto aos honorários contratuais (norma de direito material) e, cumulativamente, do montante dos honorários sucumbenciais (norma processual), passo a estudar sua incidência no processo do trabalho, notadamente após a publicação da Emenda Constitucional nº 45 de 2004.
            O tema em testilha sempre gerou inúmeras controvérsias na seara trabalhista. Muitos defendiam o seu cabimento, com aplicabilidade subsidiária do Código de Processo Civil (artigo 20). No entanto, a corrente majoritária, que após foi pacificada no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho (Súmulas 219 e 329 do TST e OJ 305 da SDI-1), era taxativa em dizer que somente caberia condenação da parte sucumbente em verba honorária quando o empregado estivesse sob os auspícios da justiça gratuita e que também viesse à juízo com assistência de seu sindicato da categoria. O ponto nodal que amparava este posicionamento era a permanência da permissão do jus postulandi na Justiça Especializada. Este entendimento permaneceu quase unânime por vários anos. Este autor também aplicava os verbetes citados.
            Entrementes, estou convencido que com a promulgação da Emenda Constitucional nº 45 de 2004 o tema deve ser repensado pela doutrina e jurisprudência laboral. Digo isso, pois com a competência da Justiça do Trabalho sensívelmente ampliada para o julgamento das lides relacionadas à relação de trabalho (inciso I do artigo 114 da CF/88), não mais restrita à relação de emprego, os motivos embasadores do antigo posicionamento deixam de existir, senão vejamos:
            O artigo 791 da CLT, que prevê a possibilidade do jus postulandi, vaticina que: "Os empregados e os empregadores poderão reclamar pessoalmente perante a Justiça do Trabalho e acompanhar as suas reclamações até o final.".
            Veja-se que o dispositivo, em harmonia com o antigo texto constitucional, prevê a possibilidade dos empregados e empregadores litigarem sem a necessidade de representação por advogado. É notório que esta faculdade está restrita ao campo da relação de emprego, não sendo franqueada às lides vincadas em relação de trabalho lato sensu.
            Contudo, também é fato que nos dias hodiernos, cada vez mais, as reclamações vem sendo patrocinadas por advogado – indispensável à administração da justiça (artigo 133 da CF/88) -, fruto principalmente do aumento da complexidade das ações cabíveis na seara laboral e da chamada "processualização" do procedimento laboral, entre outras tantas questões. Admitir formalmente o maior acesso do jurisdicionado à Justiça Especializada com amparo no jus postulandi e ao mesmo tempo não lhe dar condições técnicas de litigar em condições de igualdade com a parte ex adversa, patrocinada por advogado, é materialmente muito mais grave que exigir-lhe o patrocínio de advogado para ingressar com a ação, que em condições de pobreza jurídica, poderá ser-lhe ofertado pelo sindicato da categoria, escritórios modelos das universidades e até pela Defensoria Pública, esta instituição notoriamente fortalecida e sedimentada pela mesma emenda constitucional em estudo.
            É fechar os olhos para a realidade admitir o cabimento na Justiça do Trabalho das ações cautelares, nominadas e inominadas, da tutela antecipada, da execução provisória, da tutela inibitória, da ação civil pública, do mandado de segurança, habeas corpus e habeas data (inciso IV do artigo 114 da CF/88), entre tantos outros institutos jurídicos, sem pensar no patrocínio técnico à parte litigante. Que o processo do trabalho deve estar aberto a incidência de todas estas normas, não há dúvida. O que não se pode admitir é oferecer a faculdade de utilização dos remédios jurídicos adrede elencados à parte que não tem o mínimo conhecimento técnico, quiçá num país de analfabetos e miseráveis.
            O mestre peninsular GIUSEPPE CHIOVENDA já dizia que:

            "A necessidade de servir-se do processo para obter razão não pode reverter em dano a quem tem razão, pois, a administração da justiça faltaria ao seu objetivo e a própria seriedade dessa função do Estado estaria comprometida se o mecanismo organizado para o fim de atuar a lei tivesse de operar com prejuízo de quem tem razão." (Instituições de Direito Processual Civil, Editora Saraiva, vol. 1, p. 159)

            Reafirmo que com a edição da Emenda Constitucional nº 45/2004 tal situação se agravou mais ainda: primeiro pelo fato do jus postulandi só ser legalmente facultado aos empregados e empregadores, deixando fora deste permissivo os trabalhadores não-subordinados, imensa maioria composta por informais, que nada obstante sejam mais precarizados que os empregados formais, não tem acesso à faculdade de litigar sem patrocínio de advogado. Friso que pesquisas abalizadas mostram que apenas 30% da população economicamente ativa no Brasil tem emprego formalizado e protegido pela CLT. Não basta apenas franquear as portas do judiciário para à população, deve o Estado fornecer meios materiais para que o jurisdicionado tenha acesso à ordem jurídica justa, neste particular parafraseando o emérito processualista da Universidade de São Paulo KAZUO WATANABE.
            Um segundo fato que merece destaque é que inúmeras contradições processuais poderão surgir fruto da nova competência, tal como na hipótese do trabalhador litigar sem patrocínio de advogado, vindicando como pedido principal o reconhecimento da relação de emprego e seus consectários e, sucessivamente, o reconhecimento da prestação autônoma dos serviços, com recebimento do preço avençado. Pergunta-se: com o acolhimento do pedido subsidiário, seria permitido o jus postulandi? Se a resposta for a resposta afirmativa, em conseqüência, seria devido honorários advocatícios ao litigante não-advogado?; ou por outro lado, se não for permitido o jus postulandi nesta hipótese, e a parte for patrocinada por advogado, não se condenará em honorários, aplicando-se os verbetes do TST? os quais, frisa-se, foram sempre sustentados com amparo no permissivo do jus postulandi...
            Nota-se que inúmeras controvérsias poderão surgir com a ampliação da competência da Justiça do Trabalho em razão da redação da Emenda Constitucional nº 45 de 2004. Por isso, entendo que o panorama foi modificado, passando a ser plenamente cabível a condenação em verba honorária na seara laboral, tanto os honorários contratuais, quanto os sucumbenciais, mesmo nas lides envolvendo relação de emprego, desde que o litigante esteja sendo patrocinado por advogado legalmente constituído.
            O que estou a defender não é o fim do jus postulandi, este já declarado constitucional pelo e. STF, mas sim a sua aplicação excepcional, somente nas lides genuinamente entre empregados e empregadores e, mesmo nestas hipóteses, se os litigantes quiserem valer-se do patrocínio profissional do advogado, poderão fazê-lo com a condenação da verba honorária da parte sucumbente. Se, por outro lado, o empregado ou empregador, litigar sem patrocínio técnico, não haverá condenação honorária, salvo se aqueles forem advogados e estiverem litigando em causa própria (artigo 20, caput, do CPC).
            Um fato social também merece ser lembrado. A globalização que avulta seus tentáculos sobre todos os ramos da economia nacional, vem incentivando, de forma indireta, a inadimplência dos haveres dos trabalhadores (verba de cunho alimentar – artigo 100 da CF/88), pois é muito mais fácil deixar de pagar a verba e somente após vários anos de tramitação processual pagar o mesmo valor, apenas atualizado, enquanto àquele montante que deixou de ser entregue ao trabalhador foi multiplicado no mercado financeiro. Isso quando não existe acordo, após longos anos, dando quitação de apenas parte dos direitos lesados. Por fim, o inadimplente ainda tem a benevolência do Poder Judiciário Laboral que sequer o condena em honorários advocatícios, sob o manto do duvidoso argumento da possibilidade de litigância sem advogado, rogata maxima venia.
            O litigante que procura o Poder Judiciário como último refúgio para defesa de seus direitos, vê, após longos anos, o seu direito ser sequer retribuído matematicamente, pois do montante que teria direito a receber terá que retirar parte para pagamento de seu advogado. Neste particular encaixa como uma luva à mão as palavras do célebre Professor espanhol JESÚS GONZÁLES PÉREZ, verbis:
            "A Justa paz da comunidade só é possível na medida em que o Estado é capaz de criar instrumentos adequados e eficazes para satisfazer as pretensões que a ele se formulam. Pois se os anseios de justiça que todo homem carrega no mais íntimo de seu ser não encontram satisfação nos meios pacíficos instaurados pelo Estado, por mais forte e brutal que seja a máquina repressiva, eles transbordarão para uma busca desesperada de justiça." (El derecho a la tutela jurisdicional, 2ª edição, Civitas, Madri, 1989, pág. 21).

            Em arremate, trago outro detalhe técnico, que vem reforçar o posicionamento que aqui estou a defender, qual seja a possibilidade de condenação de honorários na Justiça do Trabalho, em face da sucumbência da parte vencida, em todas as hipóteses em que houver atuação profissional de advogado.
            Os dispositivos da Lei nº 5.584/70, referentes à assistência jurídica a ser prestada pelo sindicato aos representados e que amparava a condenação em honorários advocatícios, foram revogados pela Lei nº 10.288/01 que modificou a redação do artigo 789 da CLT, acrescentando-lhe o § 10, que disciplinou matéria idêntica a da Lei nº 5.584/70, revogando seus dispositivos por ser mais moderna e tratar da mesma matéria específica (§ 1º do artigo 2º da LICC).
            Posteriormente, esta norma celetista foi novamente modificada pela Lei nº 10.537/2002, que suprimiu o § 10, não mais subsistindo hodiernamente na norma consolidada qualquer regramento específico à condenação em honorários advocatícios. Não se há falar em nova vida aos dispositivos da Lei nº 5.584/70, vez que não é permitido de forma tácita o fenômeno da repristinação em nosso ordenamento.
            Por razões legais (artigo 769 da CLT), deve o intérprete se socorrer do processo comum, Lei nº 1.060/50, que trata pormenorizadamente da matéria, e não faz qualquer exigência de assistência por sindicato para o recebimento da verba honorária. Logo, em todas as hipóteses em que houver patrocínio profissional na Justiça do Trabalho deve ser aplicada a Lei nº 1.060/50. De igual forma, a legislação material civil será invocada (artigo 8º da CLT) para subsidiar a condenação no ressarcimento dos honorários contratuais, cumulativamente, desde que haja pedido quanto a estes.
            Timidamente, a jurisprudência vêem encampando este raciocínio:

            "HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS – No processo do trabalho são devidos apenas com base, atualmente, na Lei nº 1.060-50, na medida em que a Lei nº 10.537-02 revogou o artigo 14 da Lei nº 5.584-70. Assim, quando o trabalhador ou quem o representa, mesmo de forma sintética, declara sua dificuldade econômica para demandar, e tal assertiva não é desconstituída, conforme autoriza a Lei nº 7.510-86, que alterou a de nº 1.060-50, são devidos honorários advocatícios, na base de 15% sobre o montante da condenação." (TRT 9ª R. – Proc. 00404-2003-069-09-00-6 – (04754-2004) – Rel. Juiz Luiz Eduardo Gunther – J. 12.03.2004).

            Nada obstante todos os argumentos eriçados neste trabalho, parece-me que o c. Tribunal Superior do Trabalho não irá mudar significativamente seu antigo posicionamento, pois, logo após a vigência da nova emenda, editou a Resolução nº 126, de 16 de fevereiro de 2005, tentando uniformizar o procedimento em face da ampliação da competência, que em seu artigo 5º adverte: "Exceto nas lides decorrentes da relação de emprego, os honorários advocatícios são devidos pela mera sucumbência.".
            A possibilidade de admissão na Justiça Especializada da condenação em honorários advocatícios sucumbenciais nas lides alheias à relação de emprego já é uma demonstração de oxigenação do posicionamento do c. TST, entretanto ainda tímida em relação à construção doutrinária que estou a defender.
            Logrando êxitos a novel posição do Tribunal Superior Laboral, que demonstrou sinais de modernização, ouso divergir da orientação dada pela Resolução adrede destacada, para caminhar alguns passos à frente. Neste diapasão, faço minhas as palavras do processualista italiano FRANCESCO CARNELUTTI, verbo ad verbum:
            "As incertezas e contrastes da jurisprudência são como poros através dos quais o Direito respira a Justiça. E, quando, pelo fetichismo da uniformidade, os juízes descansam nas soluções feitas, e o conjunto de máximas adquire na prática o valor de um código desmedido, cerra-se a via normal de renovação do Direito." (Apud João de Lima Teixeira Filho, in "Instituições de Direito do Trabalho", vol. 1, 22ª edição, LTr, 2005, pág. 161).

            Diante de todo o arrazoado construído alhures, porém necessário à elucidação da controvérsia, firmo posicionamento no sentido do cabimento na Justiça do Trabalho de condenação em honorários advocatícios, tanto os contratuais (ressarcimento ao lesado), quanto os sucumbenciais (destinados ao advogado), seja a relação questionada de cunho empregatício, nos moldes da CLT, ou da relação de trabalho lato sensu, protegida pela legislação ordinária, posição que melhor se coaduna com o princípio da igualdade, regendo de forma uniforme o assunto para todos os jurisdicionados da seara laboral.
            Os requisitos necessários ao deferimento dos pedidos neste particular são: quanto aos honorários contratuais, a mera demonstração do prejuízo, por intermédio de cópia do contrato particular de honorários advocatícios celebrado, este com a fixação dentro dos limites impostos pela OAB; quanto aos honorários sucumbenciais, a mera sucumbência da parte vencida, aplicando-se o princípio da causalidade em sua fixação, não sendo necessário sequer pedido específico neste sentido, vez que a condenação com fundamento na norma processual se dá de ofício pelo magistrado prolator da decisão. Os honorários processuais e as despesas do processo são considerados pedidos implícitos na petição inicial.
            Alguns poderiam objetar que com a aceitação da condenação em honorários advocatícios na seara laboral, esta perderia uma de suas principais qualidades, a gratuidade. Os honorários na Justiça do Trabalho passaria a ser mais um ônus às partes, na maioria pobres juridicamente, que socorrem-se do Poder Judiciário para receber verbas de natureza alimentar. Não desconheço que esta faceta seja uma das conseqüências da tese que estou a defender, contudo não se pode apenas com essa visão míope tentar enxergar à inovação.
            A condenação em honorários advocatícios sempre será um ônus da parte vencida na demanda. Esta é quem deve ser sobrecarregada com o custo de um processo que seria desnecessário caso cumpri-se a obrigação espontaneamente. Ora, aqueles que buscam o Poder Judiciário para pleitear direitos realmente devidos não sofrerão qualquer acréscimo no custo do processo, pelo contrário, terão ressarcimento, tanto pessoal quanto de seu advogado, dos gastos necessários à movimentação da máquina judiciária, com a percepção dos valores dos honorários.
            Na liça diária é comum depararmos com empregadores que não quitam os valores rescisórios dos empregados no ato da rescisão, aguardando o ajuizamento da ação trabalhista, para vir à juízo propor acordo judicial pelo valor discriminado no TRCT. Constantemente essa situação ocorre. E assim o é pelo fato de que o empregador não terá qualquer ônus processual em somente quitar a dívida em audiência, é isento da condenação honorários, ainda assim será beneficiado com a eficácia liberatória geral dos acordos trabalhistas.
            De igual forma, os falsos empregados que ajuízam ações sem qualquer fundamento fático na expectativa da ocorrência da revelia ou da insuficiência de provas do suposto empregador para sagrar-se vencedor em uma demanda sem qualquer fundamento. Na pior das hipóteses, terão suas reclamatórias julgadas improcedentes, mas não terão qualquer custo ou perda patrimonial para a aventura jurídica que perpetraram.
            Em ambas as situações, a parte litigante que movimentou o aparelho estatal de resolução de conflitos sem fundamento, deverá arcar com os ônus da verba honorária, sem prejuízo da condenação em litigância de má-fé.
            Ressalto, mais uma vez, que os honorários contratuais (perdas e danos) é integralmente encampado pelo detentor do direito material, para fazer frente aos prejuízos que experimentou com a contratação do advogado. De outro norte, os honorários sucumbenciais serão destinados ao advogado que patrocinou a causa.
            É certo que os honorários sucumbenciais serão fixados em desfavor da parte sucumbente, seja ela autora ou ré, mediante simples ocorrência da sucumbência. Entrementes, a mesma sistemática não poderá ser aplicada aos honorários contratuais, pois estes demandam demonstração da extensão do prejuízo, o que não se admite em sede contestatória, conforme nos ensina a melhor técnica processual.
            Na verdade, tecnicamente, deverá o réu apresentar reconvenção ao autor da ação principal, vindicando pela reposição dos prejuízos causados pela contratação de advogado para elaboração da defesa, desde que, é lógico, o requerido demonstre que foi injustamente demandado perante o Poder Judiciário (sucumbência do autor – rejeição dos pedidos ou extinção do processo) e, concomitantemente, traga com a reconvenção cópia do contrato de honorários convencionados com seu procurador e a prova do pagamento dos honorários estabelecidos.
            Para arrematar, consigno que a concessão dos benefícios já justiça gratuita, vincada na Lei nº 1.060/50, exonera o beneficiário do pagamento dos honorários sucumbenciais, caso seja vencido na demanda, enquanto durar a situação de miserabilidade jurídica (inciso V do artigo 3º). Entrementes, não o exonerará da quitação dos honorários contratuais, estes provenientes do Código Civil, alheios ao alcance da isenção da Lei nº 1.060/50.
            Em linhas gerais, é o que penso sobre o assunto.

Sobre o autor

  • André Araújo Molina

    Mestrando em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direito do Trabalho e em Direito Processual Civil. Diretor e Professor da Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 23ª Região. Bacharel em Direito pela UFMT. Juiz do Trabalho na 23ª Região.

Como citar este texto: NBR 6023:2002 ABNT

MOLINA, André Araújo. Honorários advocatícios na Justiça do Trabalho: nova análise após a Emenda Constitucional nº 45/2004. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 740, 15 jul. 2005. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/7000>. Acesso em: 14 fev. 2011.

10 de fev. de 2011

Prescrição e Decadência: Critério Distintivo e Regimes Jurídicos


RESUMO
O presente trabalho dissertativo investiga os institutos da prescrição e da decadência. A proposta é apresentar de forma clara e direta a distinção entre ambos os institutos, o que apresenta significativa relevância prática, em razão de cada um ter um regime jurídico próprio. Tem-se por mister investigar aspectos processuais, demonstrando equivocada a assertiva que diz que a prescrição representa perda da ação e que decadência representa a perda do próprio direito, haja vista a prescrição significar, de acordo com a moerna técnica processual, a perda da pretensão. Finalizando, analisar-se-á regras importantes de cada regime jurídico.
Palavras-chaves: Prescrição. Decadência. Regimes Jurídicos.

ABSTRACT
This dissertation investigates the prescription and decadence institutes. The propose is to demonstrate in a clear and direct forms the distinctions between both, what it presents significant practical relevance, in a reason of each one have a proper legal regimen. These rules will be analyzed, as well as, the procedural aspects in order to demonstrate the mistake of the sentence: prescription is the lost of the law-suit and the decadence is the lost of the right, what is wrong because prescription is the lost of the pretension.
Word-Keys: Prescriptions. Decadence. Legal Regimen.

1 INTRÓITO
Prescrição e decadência, talvez, sejam os temas mais tormentosos na disciplina civil. Muitos profissionais se afligem quando o tema se apresenta, motivando e desafiando a elaboração deste trabalho, que se propõem, em uma linguagem simples e direta, a elucidar dúvidas e organizar idéias de compreensão.
Trata-se de institutos postos para garantir a estabilidade das relações sociais, a paz social e a segurança jurídica. As pessoas têm direitos, mas o ordenamento jurídico lhes confere prazo de atuação, sob pena de sobrevir algum tipo de problema, que irá variar se prescrição ou decadência: o direito não protege a quem dorme.
O grande problema é: qual a diferença de prescrição e decadência? Quando a inércia representará prescrição e quando representará decadência? Esta questão apresenta significativa relevância, não sendo uma questão meramente teórica, haja vista cada um desses institutos possuir um regime jurídico próprio. Outrossim, muito se ouve dizer que na prescrição se perde a ação e que na decadência se perde o próprio direito. Será que isso está correto? Será que essa assertiva, ainda tão prolatada, se coaduna com a moderna técnica processual?
A proposta que aqui se apresenta é diferenciar prescrição e decadência, abordando-se os aspectos processuais do tema, para, a seguir, serem estudados comparativamente os regimes jurídicos de cada instituto, com destaque para as recentes alterações legislativas do tema e discussões que daí advém.

2 CRITÉRIO DISTINTIVO DE PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA
Sem dúvida, o melhor critério doutrinário de distinção foi apresentado pelo saudoso magistrado AGNELO AMORIM FILHO, em seu trabalho intitulado Critério Científico para Distinguir a Prescrição da Decadência
[1]. Nesta monografia, texto referência do tema, o mestre ensina que a diferença está na classificação entre direito subjetivo e direito potestativo, pois direito subjetivo se sujeita a prescrição e direito potestativo se sujeita à decadência. O que significa isso?
É tradicional a dicotomia direito objetivo e direito subjetivo, sendo aquele o direito posto, a lei e este o direito que a pessoa tem
[2]. É uma visão simplista. Na verdade, segundo ensina Chiovenda, quando se fala no direito que a pessoa pode ter, pode ser este de dois tipos: direito subjetivo e direito potestativo[3]. Direito subjetivo é aquele ao qual corresponde um dever jurídico de outra pessoa, v.g., quem compra um relógio, entregando o preço, tem direito a receber o relógio, direito subjetivo, pois a ele corresponde um dever: a entrega do relógio. Já o direito potestativo é diferente, pois é direito ao qual corresponde não um dever de alguém, mas sim mera sujeição, v.g., direito de pedir divórcio, pondo fim ao vínculo conjugal. A sentença judicial desconstitui o estado familiar conjugal, não correspondendo dever jurídico algum do cônjuge, mas sim mera sujeição de sua parte. Deve-se perceber que o direito potestativo, em realidade, mais do que um direito, constitui-se em verdadeiro exercício de poder. Por isso, excepcional no sistema.
Direito subjetivo, como corresponde a um dever jurídico, pode ser chamado de direito a uma prestação. O não cumprimento espontâneo da prestação significa violação de um direito. Ao violar o direito, vai nascer para o titular uma pretensão, que significa, nas palavras de Carnelutti, intenção de submissão de interesse alheio ao próprio, ou seja, a exigibilidade judicial de um direito (lide é a pretensão resistida)
[4]. A pretensão é exercida através do ajuizamento de uma ação judicial, externando-se a pretensão em um pedido. Só que o titular do direito violado não terá a vida toda para ir a juízo, pois a lei lhe fixa um prazo para reclamar um direito subjetivo: um prazo prescricional.
Percebe-se que a prescrição exige a violação de um direito, ou seja, só se fala em prescrição quando o devedor se recusa a cumprir com sua prestação. Isso significa que o dies a quo do prazo prescricional será o momento em que o devedor descumpre a prestação, o dever jurídico correspondente. No exemplo supramencionado, se o devedor tem até o dia 10 para entregar o relógio, só no dia 10 se inicia a contagem do prazo prescricional, pois só nesse momento nasce para o titular a pretensão.
De se concluir que, na prescrição, o titular não perde o direito, afinal, se entregou o preço correspondente, tem direito a receber o bem. Perde a pretensão, ou seja, a exigibilidade judicial do direito. Isso importa em relevância prática: imagine-se que A deve entregar um relógio rolex a B, sobrevindo inadimplemento de A (violação do direito) e posterior prescrição em razão da inércia de B. Insatisfeito com a perda da amizade, mesmo sem poder mais ser demandado judicialmente, A resolve cumprir sua obrigação, entregando o caro relógio a B. Em rompante de arrependimento pelo alto valor do bem perdido, A ajuíza ação de repetição de indébito, pedindo a devolução do bem. Em razão de na prescrição se perder a pretensão, mas não o direito, a sentença será de improcedência, pois válido o pagamento a destempo. Não à toa, o artigo 882 do Código Civil diz ser caso de soluti retentio, ou seja, retenção de pagamento, ao rezar: “Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível”.
[5] [6]
Ante todo o exposto, claro fica o texto legal trazido pelo artigo 189 do Diploma Civil, a seguir transcrito:“Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue pala prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”.
Diferentemente, a decadência recai sobre direito potestativo. Não é direito a uma prestação, pois a outra parte nada tem a fazer, senão se sujeitar. Não há aqui possibilidade de violação de um direito, como ocorre no direito subjetivo, pois nada se tem que prestar
[7]. Como a decadência se insere nesse contexto? A pessoa tem verdadeiro poder, mas, às vezes, a lei exige que se exerça esse poder judicialmente. Em alguns casos, não há prazo para exercício desse poder, como ocorre com o divórcio, mas, em outros casos, em prol da estabilidade das relações sociais, da paz social e da segurança jurídica, o titular terá um prazo para exercer o poder, o direito potestativo. A título de exemplo, o contratante tem direito potestativo de anular o contrato se vítima de coação. Todavia, a lei exige seja feito judicialmente, fixando prazo de quatro anos a contar da cessação da coação, como previsto no artigo 178 do Código Civil[8]. É nesse sentido que se diz anulável o ato quando eivado de defeito do negócio jurídico, caracterizado pelo convalescimento, ou seja, se não argüido em certo prazo, o que era inválido torna-se válido. Qual a natureza jurídica desse prazo? Decadencial, como se infre da própria leitura do dispositivo legal invocado, pois é prazo para exercício de direito potestativo.
O que se deve perceber é que a inércia leva à perda do próprio direito na decadência. O ato anulável convalesce, ou seja, se não requerida a anulação do ato no prazo dado pela lei, este se tornará válido.

3 ASPECTOS PROCESSUAIS DA DIFERENCIAÇÃO
Processualmente, como diferenciar prescrição e decadência? Direto subjetivo é exercido através de ação condenatória, onde se pede a condenação do réu a cumprir sua prestação. Por sua vez, o direito potestativo é exercido através de ação constitutiva, onde o juiz vai constituir ou desconstituir uma situação jurídica, independentemente da atuação do réu
[9].
Assim sendo, a ação condenatória se submete à prescrição e ação condenatória se submete à decadência. E ação declaratória? Como visa apenas a uma declaração judicial, não se sujeita nem à prescrição nem à decadência. É por essa razão que a ação declaratória de nulidade não se submete a prazo, haja vista o ato nulo não convalescer
[10].
Como apresentado no intróito deste trabalho, é comum se ouvir dizer que na prescrição se perde a ação e que na decadência se perde o próprio direito. Essa idéia está correta do ponto de vista da técnica processual? Não, pois na prescrição se perde não o direito de ação, mas sim a pretensão. A boa compreensão do que isso significa exige a abordagem de noções processuais, que se passa a descrever.
Quando se estuda a ação judicial, é vista a existência de teorias que se propõe a explicá-la. A primeira é a teoria concreta ou concretista da ação, que sustenta só haver direito de ação quando sobrevier sentença de procedência. Quem sucumbe não exercer direito de ação, mas mera demanda, enquanto ato de primeira provocação judicial. Sobreveio a teoria abstrata ou abstratista pura da ação, que sustenta haver ação seja qual for a sentença. Qual dessas teorias foi adotada pelo Estado Brasileiro? Nenhuma delas, pois Liebman veio ao Brasil, influenciando os estudiosos pátrios, razão pela qual se adotou aqui a teoria abstrata ou abstratista eclética da ação. Trata-se de uma teoria intermediária, que sustenta que o direito de ação é o direito de receber uma resposta de mérito. Isso significa que haverá ação quando sobrevier uma sentença de mérito, ou seja, não se exige a procedência, mas, ao menos, a resolução do mérito. Em conclusão, o direito de ação, no Brasil, é condicionado, de modo que a ausência de qualquer das condições da ação significa inexistência de ação, mas existência de mera demanda. Não à toa, a ausência de condição da ação é caso de carência de ação.
[11]
Se o juiz reconhece prescrição ou decadência, resolve ou não o mérito? Conforme artigo 269, IV, CPC, resolve sim, pois previsto como causa de extinção do processo com resolução do mérito
[12]. Assim sendo, se se ajuíza ação de cobrança, sendo reconhecida a prescrição, houve exercício do direito de ação, pois houve sentença de mérito. Não se perdeu o direito de ação, o que se perdeu foi a pretensão, ou seja, a exigibilidade do direito. Se prescrição estivesse arrolada no artigo 267 do Código de Processo Civil, como causa de extinção do processo sem resolução do mérito, seria caso de perda do direito de ação, pois sobreviria sentença terminativa.
Será que se deve aceitar isso pacificamente? Será há mesmo resolução do mérito quando o juiz reconhece prescrição e decadência? Dispõe o art. 295 da Lei Processual Civil: “A petição inicial será indeferida: IV – quando o juiz verificar, desde logo a decadência ou prescrição”.
Ora, se indeferida a petição inicial, o mérito não é apreciado e resolvido. Então, o artigo 269 da Lei Processual diz que prescrição e decadência são casos de extinção do processo com resolução do mérito, diferente do art. 295 da mesma Lei, que diz ser caso de extinção do processo sem resolução do mérito. Como explicar essa aparente incongruência? Na verdade, quando o juiz reconhece a prescrição ou a decadência, ele não examina o mérito, pois são matérias prejudiciais, justificando o texto do art. 295 supracitado. Só que, por opção legislativa, prescrição e decadência foram colocados no artigo 269 e não no artigo 267 do Diploma Processual Civil. A razão é simples: sentença terminativa faz coisa julgada meramente formal, o que significa poder o autor repropor a demanda. Para evitar que o autor vitimado pela prescrição ou decadência já reconhecida reproponha a demanda, optou o legislador dizer ser caso de extinção do processo com resolução do mérito. Assim sendo, reconhecida a prescrição, sentença de mérito, exercido o direito de ação. Não por outra razão, como ensina o processualista Marcus Vinicius Rios Gonçalves, a sentença que pronuncia prescrição e decadência são chamadas de “falsas sentenças de mérito”.
[13]
Se a pretensão prescreve, pode-se dizer que a exceção prescreve? Exceção é defesa em direito processual. São dois os tipos de exceção (lato sensu): exceção stricto sensu (quando defesa é matéria de ordem privada) e objeção (quando matéria é de ordem pública, o que faz com que a chamada exceção de pré-executividade deva ser chamada de objeção de pré-executividade)[14]. Essa defesa prescreve?
Vislumbremos o seguinte caso prático elucidativo: A é devedor de mil reais a B, mas não cumpre a obrigação no prazo, tornando-se inadimplente. Diante da inércia de B, houve prescrição. Tempos depois B causa um dano a A, que ajuíza ação indenizatória para reparação do dano. Poderá B alegar compensação em defesa? Em tese poderia, pois na prescrição há perda da pretensão, mas não do direito, ou seja, não se pode exigir judicialmente, mas o direito de crédito ainda existe. Todavia, por expressa previsão legal, impedido está o réu de alegar compensação em sua defesa. É o artigo 190 do Código Civil, que preceitua: “A exceção prescreve no mesmo prazo em que a pretensão”. Isso significa que o dies ad quem do prazo prescricional impede não só a cobrança judicial da prestação devida, mas também a alegação da matéria em sua defesa.
Em conclusão, equivocado se dizer que a prescrição é a perda da ação. Na verdade, correto e completo é dizer que a prescrição representa a perda da pretensão e da exceção. Não à toa, como supracitado, o artigo 189 do Código Civil dispõe que violado um direito, nasce para o seu titular uma pretensão, que se extingue pela prescrição.

4 REGIMES JURÍDICOS DA PRESCRIÇÃO E DA DECADÊNCIA
Conforme acentuado, importante saber se o prazo em análise é prescricional ou decadencial, pois cada um tem o seu regime jurídico próprio, estando a prescrição previstas nos artigos 189/206 do Código Civil e a decadência nos artigos 207/211 do mesmo Diploma Legal. São essas regras que se passa a analisar em tópicos comparativos.
a) IMPEDIMENTO, SUSPENSÃO E INTERRUPÇÃO PRAZO
Em regra, o prazo decadencial se inicia e chega a termo sem sofrer ataques. Já o prazo prescricional pode ser impedido, suspenso ou interrompido. Qual a diferença? As causas suspensivas se prolongam no tempo, durante o qual o prazo prescricional não corre. Ao final, o prazo volta a correr de onde parou. Já as causas interruptivas são pontuais e fazem reiniciar o prazo desde o início, independentemente do prazo já transcorrido. Por fim, as causas impeditivas são as mesmas causas temporárias que suspendem o prazo. Essas causas serão impeditivas quando já se verificarem no início do prazo, pois, ao invés de suspender, impedirá que o prazo prescricional se inicie.
[15]
As causas impeditivas ou suspensivas estão previstas nos artigos 197/200 do Código Civil. Entre as causas, destaque para o artigo 198, I, que preceitua não correr o prazo prescricional contra absolutamente incapaz. Isso significa que o absolutamente incapaz jamais poderá perder a pretensão pela prescrição, pois contra ele o prazo está parado. A razão é evidente, desprovido de qualquer discernimento, será protegido pela lei. Isso leva a uma indagação: o relativamente incapaz pode perder a pretensão pela prescrição? Pode, pois o prazo não corre apenas contra o absolutamente incapaz. Todavia, a lei não o desampara, na medida em que o artigo 195 da Lei Civil legitima direito de regresso em face do seu assistente pelos prejuízos decorrentes da prescrição[16].
Já as causas interruptivas estão previstas nos artigos 202 do Código Civil, provocando o reinicio da contagem do prazo. O titular de um direito subjetivo sofre da prescrição diante de sua inércia; se ele agir na tentativa de fazer valer o seu direito, não poderá perder sua pretensão, sendo o prazo interrompido, pois a idéia é que transcorra todo o prazo sem essas atitudes positivas do titular do direito subjetivo.
Dentre as causas interruptivas, destaque para o primeiro inciso, que diz que o despacho liminar positivo interrompe a prescrição, se promovida no prazo da lei processual, que, nos termos do seu artigo 219, §§ 2º e 3º, é de 10 dias prorrogáveis por mais 90 dias. Como asseverado, se o titular do direito violado vai a juízo reclamar o seu direito, não pode ser prejudicado pela prescrição, pois não se evidencia a inércia.
Este ponto reclama por aprofundamento. O caput do artigo 219 da Lei Processual
[17] diz que é a citação válida que interrompe a prescrição. Veio o novo Código Civil em 2002, dizendo que é o despacho do juiz que ordenar a citação[18]. O que interrompe a prescrição?
Alguns autores, de forma apressada, sustentam a existência de antinomia nesse ponto, ou seja, mais de uma lei para o caso concreto. Não é bem assim, pois a Lei Civil dispõe que o despacho liminar positivo interrompe a prescrição, se o autor promover a citação no prazo legal, ou seja, é a citação válida que interrompe a prescrição, mas os efeitos da interrupção, segundo o novo Código Civil, retroagem à data do despacho citatório, se o autor a promover no prazo legal.
Se fosse apenas isso, grandes problema não haveria. Só que a questão não é tão simples assim. O Código de Processo Civil afirma que citação válida interrompe a prescrição, mas vai além, afirmando que a interrupção retroage à data da propositura da demanda, se o autor promover a citação no prazo legal. Aqui sim há antinomia, o conflito de leis, pois o Diploma Civil diz retroagir à data do despacho liminar positivo. Ora, se o autor promover a citação no prazo legal, para que momento retroage a interrupção da prescrição: à data do despacho liminar positivo ou da propositura da demanda?
Alguns autores, novamente de forma apressada, afirmam valer o disposto no Novo Código Civil, pois havendo conflito entre leis gerais de mesma hierarquia, a antinomia é aparente, pois a lei posterior afasta a aplicação da lei anterior (lex posterior derogat legi priori). Assim, a interrupção da prescrição retroagiria à data do despacho liminar positivo
[19].
Data vênia, esta é uma solução muito simplista, que não investiga a fundo a questão. O novo Código Civil, embora de 2002, estava em trâmite legislativo desde a década de 70, década do atual Código de Processo Civil, que é de 1973. Ato do processo que interrompe a prescrição é tema processual, razão pela qual o Projeto do Novo Código Civil, ao tratar da prescrição, já na década de 70, foi buscar na Lei Processual inspiração para o tema, que preceituava, em seu texto original, no art. 219, §1º: “A prescrição considerar-se-á interrompida na data do despacho que ordenar a citação”. Não à toa, o novo Código Civil tem essa redação. Ocorre que, em 1994, o Código de Processo Civil foi alterado pelas leis 8950 a 8953, sendo alterada a redação do citado art. 219, §1º, que passou a dispor: “A interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação”.
O que deveria fazer o Poder Legislativo com relação ao projeto do novo Código Civil? Se adequar à nova regra processual durante o trâmite legislativo. Ocorre que o legislador se esqueceu de fazer a atualização. As revisões foram feitas sem que se atentassem ao problema, como acentua Marcus Vinícius Gonçalves:
O Projeto de reforma do Código Civil brasileiro tramitou durante mais de vinte e cinco anos no Congresso Nacional de tal sorte que a regra constante do art. 202, I, da nova lei não pode ser tomada apenas em sua literalidade, mas sim no confronto com a opção feita pelo legislador quando da edição da citada lei 8952/94 e que, como visto, alterou o sistema para fazer o efeito interruptivo retroagir ao momento do ajuizamento. Na realidade, o legislador não se lembrou, por ocasião da votação do projeto do novo Código, de corrigir a redação do aludido dispositivo, para harmonizá-la com a atual redação do CPC.
[20]
Em conclusão, vale o disposto no Código de Processo Civil, que ordena retroatividade da interrupção da prescrição à propositura da demanda, mesmo indo contra a literalidade da novel Legislação Civil, que é lei posterior. E o motivo é simples: o novo Código Civil errou! Nesse sentido, com maestria, leciona Flávio Luiz Yarshell:
“Ora, o art. 219 do Código de Processo Civil de 1973, em sua redação original (...) já dizia - e a rigor continua a dizer - que a interrupção ocorre pela citação, embora depois ressalve a retroação desse efeito para o momento do despacho que ordenara o ato. (...) se a retroação desse efeito para momento anterior ao da citação foi e é admitida pelo sistema, parece mais correto dizer que a retroação alcança o ajuizamento e não apenas o despacho que ordenar a citação, porque essa é a forma ditada pela lei processual, à qual, como dito, reporta-se expressamente a nova lei civil”.
[21]
E ratifica Carlos Roberto Gonçalves, quando assenta esse entendimento:
“Tal dispositivo [art. 202, I, CC] não pode, todavia, sofrer uma interpretação literal, sob pena de constituir indesejável retrocesso doutrinário e legal. A interpretação sistemática conduz à conclusão de que a interrupção da prescrição continua a retroagir à data da propositura da ação desde que o autor cumpra o ônus de promover a citação do réu no prazo estabelecido”
[22].
De se concluir, portanto, que a citação válida interrompe a prescrição, mas, se promovida no prazo legal de 10 dias prorrogáveis por mais 90 dias, a interrupção da prescrição retroagirá a data da propositura da demanda, valendo o disposto no Código de Processo Civil. O Novo Código Civil não se estabeleceu para contradizer a citação válida como causa interruptiva da prescrição. Em realidade, a divergência é com relação ao momento da retroatividade, se feito no prazo e na forma da lei processual. Pelo Código de Processo Civil, retroage à data da propositura da ação, diferente do Novo Código Civil, que estatui retroatividade à data do despacho liminar positivo. Não obstante seja a novel Legislação Civil lei posterior, prevalece a regra esculpida na Lei Processual.
Aliás, essa retroatividade da prescrição para o momento da propositura da ação é muito mais justa, razão pela qual o Código de Processo Civil foi alterado em 1994 para consagrar tal entendimento. Não é justo retroatividade à data do despacho liminar positivo, haja vista existir um procedimento entre a propositura da demanda e despacho liminar positivo que foge à esfera de atuação do jurisdicionado. Dizer retroagir à data do despacho liminar positivo é prejudicá-lo pela morosidade do Poder Judiciário. Basta pensar na situação em que falta um mês para a prescrição se consumar. O que fazer para não perder a pretensão pela prescrição? Basta ajuizar ação nesse prazo e praticar os atos que lhe cabe para a citação. Se a retroatividade fosse para a data do despacho citatório, será que este seria proferido no prazo remanescente? Poderia, portanto, o titular da pretensão se ver prejudicado pela morosidade do Poder Judiciário, o que não se pode admitir.
Voltando à análise comparativa, no que se refere à decadência, conforme já assentado, seu prazo não sofre de ataques, chegando a termo sem tormentos de qualquer natureza. Essa é a regra, mas não absoluta, pois o art. 207 do Código Civil ressalva a possibilidade da lei prever causa suspensiva, impeditiva ou interruptiva do prazo decadencial, o que já faz no seu artigo seguinte: não corre prazo decadencial contra absolutamente incapaz. Significa que o absolutamente incapaz, tal como ocorre na prescrição, jamais poderá perder o direito pela decadência. O relativamente incapaz poderá sofrer com a decadência, mas a lei lhe confere direito de regresso contra o assistente pelos prejuízos decorrentes da decadência. Essa é uma causa de natureza impeditiva ou suspensiva. A questão é: pode o prazo decadencial ser interrompido? Se expresso em lei, sim, o que vem previsto no artigo 220 do Código de Processo Civil, que estende o efeito da citação válida interromper a prescrição a todos os prazos extintivos, por isso também aplicável à decadência.
[23]
b) POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DE OFÍCIO
A decadência sempre foi vista como uma questão de ordem pública, diferente da prescrição vista tradicionalmente como questão de ordem privada, de interesse apenas das partes. Por isso, a Legislação Civil pretérita estatuía que o juiz poderia reconhecer a decadência de ofício, mas não a prescrição, caso em que se exigia o requerimento das partes. Sobreveio o novo Código Civil, mantendo, em linhas gerais, essa regra. Todavia criou uma exceção, conforme preceituava o artigo 194
[24]: o juiz poderia reconhecer a prescrição de ofício para favorecer absolutamente incapaz. A razão clara: devedor absolutamente incapaz, por ser desprovido de discernimento por completo, não está apto a alegar eventual prescrição, sendo protegido pela lei.
Só que no ano de 2006 essa questão mudou em decorrência da lei 11280/06, que revogou o artigo 194 do novo Código Civil concomitantemente à alteração do disposto no §5º do artigo 219 do Código de Processo Civil
[25], que estatui que juiz pode declarar de ofício da prescrição. Com a atual redação legal, o juiz pode reconhecer de ofício tanto a prescrição como a decadência, o que erigiu a prescrição à matéria de ordem pública. Trata-se de um poder-dever, pois mais do que poder, deve o magistrado reconhecê-lo de ofício.
Todavia, em se tratando de decadência, a questão tem que ser minudenciada. Existem dois tipos de decadência: legal e convencional
[26]. Parece que uma decorre de lei, outra da vontade das partes. É um equívoco assim pensar, pois ambas decorrem da lei. Será convencional quando a lei não dá um prazo certo, mas sim um prazo máximo, podendo as partes convencionar um prazo dentro dos limites legais. A título de exemplo, o artigo 505 do Código Civil[27] trata da chamada cláusula de retrovenda no contrato de compra e venda, que permite ao vendedor recomprar o bem vendido. Trata-se de direito potestativo com prazo decadencial máximo de 3 anos. Se a decadência for convencional, o juiz não pode declarar de ofício, exigindo-se requerimento das partes, como estatui os artigos 210 e 211 do Código Civil[28] [29].
Seja qual for o caso, prescrição ou decadência, as partes podem alegá-las no processo judicial e a lei dispõe que poderão fazê-lo em qualquer grau de jurisdição. Prescrição e decadência podem ser alegados em Recurso Especial ou Extraordinário, mas nesses casos, somente se houver pré-questionamento, ou seja, não se pode alegar originariamente.
E na fase de execução, podem as partes alegar prescrição e decadência? Assim enuncia a súmula 150 do Supremo Tribunal Federal: “Prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação”. A prescrição e a decadência podem ser alegadas até mesmo na execução, cujo prazo é o mesmo da pretensão. É a prescrição ou decadência superveniente a sentença, para ajuizar a execução extrajudicial ou dar início à segunda fase do processo sincrético, ou seja, a fase de execução judicial que se segue à fase cognitiva. Estas podem ser alegadas em embargos à execução e até em objeção de pré-executividade, pois além da decadência, a prescrição passou a ser questão de ordem pública com a possibilidade de ser decretada de ofício pelo juiz.
c) POSSIBILIDADE DE RENÚNCIA
O que aqui se indaga é se a prescrição ou decadência podem ser renunciadas. A princípio não, pois seria renunciar a estabilidade das relações sociais, a paz social e a segurança jurídica. Por essa razão o artigo 209 do Código civil diz nula a renúncia à decadência fixada em lei. Nada obsta renunciar a decadência convencional, pois faculdade para as partes preverem em prazo máximo.
Só que a prescrição, por ser perda da pretensão, mas não do direito, apresenta uma peculiaridade: pode ser renunciada, mas só depois consumada. Por quê? Não se pode renunciar antes de consumar a prescrição, já no contrato, pois geraria insegurança jurídica e instabilidade das relações sociais. Agora, quando se paga dívida prescrita, se está renunciando a prescrição, o que se viu ser válido em razão da perda da pretensão, mas não do direito. Não precisava mais pagar, porque prescreveu, mas mesmo assim se pagou. O pagamento é válido, cabendo soluti retentio. Só que além da exigência de já consumada, há outra: não prejudicar terceiro, ou seja, inválido será o pagamento de dívida prescrita se tornar a pessoa insolvente para adimplir obrigação ainda não prescrita. É o que se depreende da leitura do artigo 191 do Diploma Civil, que dispõe:
A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição.
Uma questão de relevo pode ser levantada: conforme já abordado, desde 2006, com a lei 11280/06, a prescrição tornou-se matéria de ordem pública ante a possibilidade do reconhecimento judicial de ofício. Será que esse novo entendimento revoga o artigo que permite renúncia da prescrição, haja vista questão de ordem pública ser irrenunciável? Não, está certo que apenas questões de ordem privada podem ser renunciadas e que a prescrição tornou-se questão de ordem pública, mas ainda assim, se permite a renúncia nos termos vistos, pois a prescrição representa perda da pretensão, mas não do direito.
Nesse sentido, dispõe o Enunciado 295 das Jornadas de Direito Civil do Centro de Estudos do Conselho da Justiça Federal: “A revogação do art. 194 do CC pela lei 11280/06, que determina ao juiz o reconhecimento de ofício da prescrição, não retira do devedor a possibilidade de renúncia admitida no art. 191 do texto codificado”.
d) POSSIBILIDADE DE RENÚNCIA
Nem prescrição, nem decadência podem ter seus prazos alterados pela vontade das partes, pois são prazos previstos em lei
[30]. O detalhe é a possibilidade de alterar prazo de decadência convencional, desde que dentro dos limites legais, pois não representa desrespeito à lei.

5 CONCLUSÃO
Resta evidente a diferenciação de prescrição e decadência, tema tão tormentoso até entre os estudiosos da Ciência Jurídica.
O direito subjetivo, enquanto direito a uma prestação, se submete à prescrição. Com a violação de um direito, traduzido no não cumprimento da prestação correspondente ao direito subjetivo, nasce para o titular uma pretensão, que se extingue pela prescrição. Isso significa que a partir descumprimento da obrigação, o credor terá um prazo prescricional para exigir judicialmente a prestação descumprida espontaneamente. É a ação condenatória que se submete à prescrição, pois é esta a ação em que se busca a tutela jurídica de um direito subjetivo.
O direito potestativo, enquanto direito que corresponde à mera sujeição, submete-se à decadência. A lei concede um verdadeiro exercício de poder, mas exige o exercício através do Poder Judiciário e, às vezes, impõe um prazo, decadencial, para exercício judicial do direito potestativo. É a ação constitutiva que se submete à decadência, pois é o instrumento de exercício judicial do direito potestativo. Ação declaratória não se submete nem a prescrição, nem à decadência, pois visa-se apenas a uma declaração.
Restou demonstrado no plano processual a incorreção na afirmativa de que na prescrição se perde a ação e que na decadência se perde o direito. Na verdade, o que se perde na prescrição é a pretensão, que é a exigibilidade do direito violado, pois a sentença que reconhece a prescrição é uma sentença de mérito por ordem do artigo 269 do Código de Processo Civil, o que significa haver exercício do direito de ação mesmo com a prescrição consumada. Considerando o disposto no artigo 190 do Código Civil, de forma completa, o correto é: na prescrição se perde a pretensão e a exceção.

6 REFERÊNCIAS
AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis, RT, São Paulo, v. 300, p.7, out. 1960 e também v. 711, p. 725-6, out. 1997.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 6. ed. – Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002. v. I, p. 115.
FRANCESCO CARNELUTTI, Francesco. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Lejus, 1999.
FRANCESCO CARNELUTTI, Estúdios de Derecho Procesal, vol. 2, trad. Esp. de Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1952.
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GONÇALVES, Carlos Roberto et al. Prescrição: Questões Relevantes e Polêmicas. Novo Código Civil, Questões Controvertidas. São Paulo: Método, 2003. Série grandes temas de direito privado.
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GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios. Novo Curso de Direito Processual Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. v.I._____________________________. Novo Curso de Direito Processual Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. v.II.
LEAL, Antônio Luis da Câmara. Da prescrição e da Decadência. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959.
LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil, parte geral. 3. ed. Rev, atual.e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, s.d. v.I.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 34 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. I.
NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JR., Nelson. Código Civil Comentado. 4. ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, s.d.
NEVES, Murilo Sechieri Costa. Direito Civil 1, parte geral. São Paulo: Saraiva, 2005. Coleção Cursos e Concursos.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, parte geral. 21 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. v.I.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil, parte geral. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008. v. I.
YARSHELL, Flávio Luiz. A Interrupção da Prescrição pela Citação: Confronto entre o novo Código Civil e o Código de Processo Civil. Porto Alegre: Síntese.

8 de fev. de 2011

Ilegalidade da cláusula contratual que exige prévia anuência da construtora e pagamento de taxa para cessão de direitos sob imóvel

Fonte: http://imoveisemercado.wordpress.com/artigos/ilegalidade-da-clausula-contratual-que-exige-previa-anuencia-da-construtora-para-cessao-de-direitos-e-da-%E2%80%9Ctaxa-de-anuencia%E2%80%9D/

            Introdução
          Inicialmente alertamos que pelas idéias expostas a seguir, não pretendemos, de forma nenhuma, apresentar um estudo profundo e detalhado sobre a necessidade da anuência das construtoras para que o promitente comprador de imóveis possa ceder seus direitos.
          Deveras, em razão de nosso inconformismo com esse tipo de prática comercial, absolutamente ilícita em nosso pensar, quisemos, pelo presente, apenas, e em poucas linhas, oferecer noções e apresentar fundamentos que indicam a ilicitude das imposições contratuais referentes ao pagamento de “taxas” e à obtenção de prévia autorização para cessão de direitos relativos a compromisso de venda de unidades imobiliárias.
            1. Princípio da autonomia da vontade e a função social dos contratos
          Dentre os princípios jurídicos que regem o direito contratual está o da autonomia da vontade. Funda-se, este primado, no poder das partes disciplinarem livremente seus interesses. Via de regra, este princípio jurídico assegura às pessoas os direitos de contratarem: a) se quiserem; b) quando quiserem; c) o que quiserem; d) com quem quiserem; e, e) como quiserem. É certo que esses poderes inerentes à autonomia da vontade não são absolutos, vez que o interesse público exige que a lei estabeleça limites e obrigações. Assim, embora às pessoas esteja assegurada a autonomia da vontade para contratarem, um contrato não poderá se sobrepor à ordem pública, que impede acordos de vontades que ofendam a lei, os bons costumes, bem como todo e qualquer direito coletivo.
          O artigo 421 do Código Civil impõe que a liberdade de contratar deve se orientar e limitar pela função social dos contratos, a qual autoriza a declaração de nulidade de cláusulas contratuais ou, se necessário, de todo o contrato, sempre que houver ofensa à justiça contratual, à boa-fé e à probidade.
          Discorrendo sobre o assunto, Maria Helena Diniz explica, verbis:
“Assim, o princípio da autonomia da vontade é o poder conferido aos contratantes de estabelecer vínculo obrigacional, desde que se submetam às normas e seus fins não contrariem o interesse geral, de tal sorte que a ordem pública e os bons costumes constituem limites à liberdade contratual. O princípio da autonomia da vontade sofre, portanto, restrições, trazidas pelo dirigismo contratual, que é a intervenção estatal na economia do negócio jurídico contratual, por entender-se que, se se deixasse o contratante estipular livremente o contrato, ajustando qualquer cláusula sem que o magistrado pudesse interferir, mesmo quando uma das partes ficasse em completa ruína, a ordem jurídica não estaria assegurando a igualdade econômica.”
(Direito Civil Brasileiro, 3º vol., 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 34)
          Tendo em vista que os contratantes são obrigados a guardar, tanto na formação do contrato, como em sua execução e conclusão, os princípios de probidade e boa-fé, não nos parece lícita qualquer cláusula contratual que restrinja os poderes inerentes à autonomia da vontade.        
          Desta maneira, quando uma construtora insere no contrato uma regra estabelecendo que o promitente comprador não pode ceder seus direitos a um terceiro sem sua anterior anuência, e pagamento de uma “taxa”, tem-se um exemplo claro de restrição à autonomia de vontade para contratar.
          Valendo-se de sua posição privilegiada, a construtora não permite que esse tipo de regra seja retirada de seus contratos (contratos por adesão). Aos promissários compradores, portanto, não resta outra alternativa senão a de assinarem o contrato com esse tipo de abusividade inserida.
            2. Contratos por adesão
          O surgimento de um contrato decorre de um acordo de vontades entre pelo menos duas pessoas, sendo que o exercício desse direito – de contratar – deve estar em sintonia com todos os princípios que o orientam.
          Pelo princípio da boa-fé, a interpretação dos contratos deve ser realizada atendendo-se mais à intenção das partes, do que o sentido literal do instrumento, para que com isto não haja ofensa a interesses sociais relacionados com a segurança das relações jurídicas. Isto, por si só, impõem aos contratantes o dever de agirem (art. 422, CC), antes, durante e após o contrato, com probidade e confiança (enunciados nºs 170 e 363 – Jornada de Direito Civil – STJ).
          O princípio da boa-fé está intimamente ligado aos princípios da probidade e da confiança, que são de ordem pública (enunciado nº 363 – Jornada de Direito Civil – STJ). O princípio da função social dos contratos, exige lealdade entre as partes, impondo comportamentos transparentes, e repudiando qualquer conduta ou cláusula abusiva ou desleal.
          Quando o contrato é redigido por partes que se encontram em condições de igualdade, os contratantes exercem o direito de contratar com absoluta observância ao princípio da autonomia da vontade. Ou seja, os interessados manifestam suas vontades analisando e debatendo livremente todas as condições e regras que constarão do respectivo contrato. Não há como a vontade de um se sobrepor à dos demais. Esse tipo de contrato é classificado como paritário.
         Não é esse o caso dos contratos firmados entre os promitentes compradores e as construtoras. Nestes contratos não há como o promitente comprador alterar qualquer cláusula ou condição imposta pela construtora, que previamente, e a seu arbítrio, redige o instrumento. Certamente que se fosse aberta a oportunidade de os promitentes compradores realizarem qualquer mudança de cláusulas, nesses contratos não encontraríamos tantas disposições expressamente abusivas.
          Contratos dessa espécie, em que não há a possibilidade de discutir ou alterar suas cláusulas, recebem o nome de contratos por adesão, haja vista que à parte não restará outra alternativa senão apenas a de aderir às regras contratuais em sua totalidade, por maior que seja a quantidade de cláusulas lesivas.
            3. Abusividade da prévia anuência e respectiva taxa para cessão de direitos
          Inicialmente é importante destacar que trata-se de relação de consumo aquela que se estabelece entre os adquirentes de unidades imobiliárias e as respectivas construtoras. Assim sendo, aplicam-se as regras veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990). Vale lembrar que todas essas normas são de ordem pública e interesse social, tal como estabelecido no artigo 1º desse diploma normativo.
          Ao se firmar um compromisso de compra e venda de um imóvel com uma construtora é raro não encontrarmos cláusulas estabelecendo que a cessão de direitos referentes ao respectivo compromisso dependem de anuência prévia da construtora, bem como do pagamento de uma taxa (denominada “taxa de anuência” ou “taxa de expediente”, entre outras nomenclaturas), normalmente fixada em 2,00% (em alguns casos chega a 5,00%).
          Esse tipo de cláusula contratual nos parece nula de pleno direito. O artigo 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor é claro ao estabelecer que são nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.
          Uma vez firmado o compromisso de compra e venda com a construtora, o promitente comprador passa a ser titular de todos os direitos relativos à respectiva contratação, não sendo lícita qualquer regra que limite ou restrinja sua autonomia de vontade para contratar.
          Desta forma, não se pode entender como lícitas as regras impostas pela construtora exigindo que antes de qualquer cessão de direitos, o respectivo titular seja obrigado a obter dela (construtora) prévia autorização, sendo que para isto deverá pagar uma inadmissível “taxa”.
          Essa “taxa”, por mais que se tente justificar os motivos de sua fixação, não tem uma contraprestação capaz de convencer da sua necessidade. É, na realidade, uma forma encontrada pelas construtoras de enriquecerem às custas dos cedentes ou dos cessionários, pois dos bolsos de algum deles deverá sair o valor para pagamento de dessa cobrança injustificada.
          Consideramos abusiva toda e qualquer estipulação contratual que, de alguma forma, tenha como consequência ou finalidade o enriquecimento ilícito, vez que este é expressamente vedado pelo nosso ordenamento jurídico (art. 884, CC/2002).
           De fato, para a edificação de um determinado empreendimento as construtoras e incorporadoras realizam os cálculos necessários à fixação dos preços a serem aplicados quando das vendas das unidades, sendo que para isto já incluem todos os custos e valores necessários às negociações, através das quais alcançarão os tão almejados lucros. Não há razão para que exijam também o pagamento dessas “taxas” como condição para anuírem com a cessão de direitos eventualmente pretendida por algum promitente comprador.
          Submetida à apreciação do Poder Judiciário, essa cobrança tem sido considerada ilegal, valendo citar algumas posições jurisprudenciais. Vejamos: 
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO. CLÁUSULA ABUSIVA. TAXA DE ANUÊNCIA. LEGITIMIDADE ATIVA. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. COERCIBILIDADE. ARTIGO 51 DO CDC EM CONFRONTO COM A LEI DE ARBITRAGEM.
(…).
Tendo sido a autora quem pagou a taxa que reputa ilegal, está ela legitimada para pleitear em juízo a declaração de sua nulidade e a devolução do que pagou. A cessão do direito da adquirente do imóvel não pode ficar condicionada à anuência da construtora e muito menos ao pagamento de uma taxa flagrantemente abusiva, e que traduz enriquecimento sem causa. O trabalho desempenhado pela construtora e incorporadora para realizar o empreendimento já é remunerado pelo preço de cada unidade, não lhe cabendo participar de eventual vantagem pecuniária obtida pelo adquirente, quando pretende este revender a unidade. Desprovimento do recurso.”
(TJ/RJ – 8ª C. Cív., Ap. Cív. nº 2005.001.37220, Rel. Des. Odete Knaack de Souza, 13/12/2005)
          Nessa mesma linha decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: 
Adjudicação Compulsória — Cabimento — Cadeia de cessão de direitos demonstrada — Quitação anuída tacitamente pela Apelante – Recusa infundada em outorgar a escritura definitiva – Anuência da Apelante para que a cessão de direitos tenha validade — Desnecessidade – Art. 115 do Código Civil de 1916 reiterado pelo art. 122 do Novo Código Civil – Multa pelo não recebimento da escritura no prazo de seis meses do vencimento da última parcela — Ausência de respaldo legal — Abusividade — Art. 51, IV do CDC — Sentença mantida Recurso improvido. Recurso”(TJ/SP – 7ª C. Dir. Priv., Ap. Cív. c/ Rev. nº 541.479-4/5-00, Rel. Des. Luiz Antonio Costa, julg. 26.03.2008) 
           Da leitura do referido acórdão, verifica-se que, tal como entendemos, reputou-se ilegal a exigência de anuência para eficácia da cessão, bem como a cobrança de uma taxa para tanto. Confira-se:
 “(…).
A alegação de que havia obrigatoriedade da anuência da Apelante para que o instrumento de cessão fosse válido não procede, pois tal disposição é nula frente ao art. 115 do Código Civil de 1916, reiterado pelo art. 122 do Código Civil de 2002, uma vez que sujeita a realização da cessão de direitos ao puro arbítrio da Apelante. (…)”
           Semelhante decisão já havia sido proferida pela mesma Corte de Justiça: 
CESSÃO – Compromisso de compra e venda – Doutrina e jurisprudência que admitem a cessão do compromisso independentemente da anuência do promitente vendedor – Meios conferidos ao promitente vendedor para pleitear a resolução do contrato, na hipótese de não preencher o cessionário os requisitos para figurar como novo promitente comprador ou der azo, por outro motivo, ao desfazimento do contrato – Recurso provido.”
(TJ/SP – 9ª C. Dir. Priv., Ap. Cív nº 87.422-4, Rel. Des. Franciulli Netto, julg 05.10.1999)
           Recentemente, o Eg. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, reiterando o entendimento acima exposto, proferiu decisão declarando a abusividade da regra contratual que impõe o pagamento da “taxa de anuência”. Vejamos: 
“Ação declaratória de nulidade de cláusula contratual c.c. cobrança (contrato imobiliário) – Procedência – Inconformismo – Desacolhimento – Reconhecimento da abusividade de cláusula contratual, inserida em contrato de adesão, que estipula o pagamento de taxa de transferência, para fins de anuência do promitente-vendedor, na hipótese de cessão de direitos, pelo promissário- comprador – Mitigação do pacta sunt servanda, ante a vantagem injustificada, em prejuízo do aderente – Precedentes deste E. Tribunal de Justiça – Sentença mantida – Recurso desprovido.”
(TJ/SP – 9ª C. Dir. Priv., Ap. Cív. nº 994.05.100607-3, Rel. Des. Grava Brazil, julg. 09.03.2010)
           Em seu voto, o Des. Grava Brazil, com clareza, demonstra a inadmissibilidade da taxa de anuência (também conhecida como “taxa de expediente”):
 “(…).
No caso, com esse balizamento, forçoso reconhecer o caráter eminentemente potestativo da cláusula contratual, inserida em contrato de adesão, que condicionou a anuência da apelante ao pagamento da denominada “taxa de expediente”, no valor de R$ 16.087,16 (item IV, fls. 56).
A respeito, oportuna a constatação, conforme se tira da leitura da r. sentença recorrida, de que “o autor não estava simplesmente rescindindo o contrato e devolvendo o imóvel para a ré, hipótese em que esta poderia reclamar, em tese, tal valor em razão dos prejuízos decorrentes dessa conduta. O autor, adimplente, estava simplesmente transferindo o contrato para outra pessoa, com anuência da ré, de modo que não há que se falar, sequer, em prejuízo, sendo que a transferência, no caso, não justifica o valor fixado”.
Efetivamente, referida cobrança é abusiva e implica em injustificada vantagem ou enriquecimento sem causa, consoante elucidativa fundamentação externada em precedente de lavra do culto Ministro Cezar Peluso, ao tempo em que judicava nesta Corte de Justiça (fls. 62/65).
No mesmo sentido, confira-se entendimento recente deste Egrégio Tribunal, tirado de demanda que trouxe discussão similar:
‘COBRANÇA – Taxa de transferência de direitos de contrato de compromisso de compra e venda de imóvel – Incidência do CDC na espécie - Abusividade da cobrança de tal taxa – Configuração de arbitrário aumento de lucros e abuso do poder econômico – Reforma da sentença para julgar improcedente o pedido – Inversão dos ônus da sucumbência – Recurso provido’. (Ap. 163.389-4/9-00, 1ª Câm. Dir. Priv., Rel. Des. Paulo Eduardo Razuk, j. em 17/3/2009, negrito não original)
(…).”
             Conclusão
          A autonomia de vontade para contratar não pode ser limitada em razão de regras contratuais impostas pelas construtoras que, nos contratos que redigem, condicionam a cessão de direitos do promitente comprador a uma prévia anuência e ao pagamento de “taxas”.
          Em se tratando de contrato por adesão, o promitente comprador não pode alterar cláusulas estabelecidas unilateralmente pelas construtoras. Desta sorte, verificada sua abusividade pode-se concluir pela sua nulidade de pleno direito. 

CARLOS ALBERTO DEL PAPA ROSSI 
Advogado, consultor imobiliário, pós-graduado em Direito Tributário (PUC/SP), pós-graduado em Direito Processual Civil (PUC/SP), MBA com ênfase em Direito EMpresarial (FGV/SP), Extensão Universitária em Direito Imobiliário (FMU), autor do livro “Introdução ao Estudo das Taxas” e de artigos publicados em revistas especializadas.